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É ilegal a cláusula de não reembolso praticada pelos hotéis e empresas aéreas, que devem ressarcir o valor pago se o serviço é cancelado

As empresas aéreas e hotéis oferecem, com frequência, a tarifa não reembolsável com descontos, a qual fica retida em caso de cancelamento dos serviços ou remarcação, arcando o consumidor integralmente com o seu custo.

Ocorre que a referida cláusula de não reembolso praticada pelas empresas aéreas e hotéis é uma prática abusiva refutada pela legislação brasileira, que não encontra amparo na nossa Constituição Federal e, por isso, é recorrentemente afastada pelos Tribunais.

Com efeito, a cláusula de não reembolso coloca o consumidor em situação de desvantagem exagerada em relação com as empresas prestadoras de serviços, as quais lhe transferem o risco do negócio, razão pela qual, ainda que seja atrelada a um desconto, essa afronta a ordem contida no artigo 5º, inciso XXXII, da CF/88, de que o Estado tem o dever de promover a defesa do consumidor, pois a parte hipossuficiente da relação.

A cláusula de não reembolso apesenta-se também como abusiva, sendo, com isso, nula de pleno direito a teor do que prescreve o artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor. É que, se há o cancelamento das reservas, é certo que os serviços não serão prestados pelas empresas aéreas nem pelos hotéis. Logo, a retenção do 100% da tarifa conduz ao claro enriquecimento sem causa das empresas prestadoras dos serviços e coloca, ainda, o consumidor em desvantagem exagerada, incompatível com a equidade.

O desequilíbrio contratual na hipótese salta aos olhos, haja vista o favorecimento exclusivo das empresas em detrimento do consumidor. Enquanto as empresas ficam com 100% da tarifa sem ter prestado qualquer serviço, o consumidor não usufrui do serviço e ainda arca com a totalidade do respectivo preço.

Além de configurar enriquecimento sem causa das empresas aéreas e hotéis, a retenção de 100% da tarifa afronta dispositivos legais específicos.

No caso das empresas aéreas, § 3º do artigo 740 do Código Civil, específico para os contratos de transporte de pessoas, estipula que “o transportador terá direito de reter até cinco por cento da importância a ser restituída ao passageiro, a título de multa compensatória”. E, conforme o caput do citado artigo, o passageio tem direito à restituição do valor da passagem, em fazenda a comunicação da desistência em tempo de ser renegociada.

Por essas razões a jurisprudência firmou-se no sentido da nulidade da cláusula de não reembolso.

A titulo de exemplo, destaca-se as palavras do Exmo. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no voto proferido no REsp 1.321.655/MG, que bem resumem as razões da nulidade da cláusula de 100% do valor do serviço cancelado, observando que “deve-se, assim, reconhecer a abusividade da cláusula contratual em questão seja por subtrair do consumidor a possibilidade de reembolso, ao menos parcial, como postulado na inicial, da quantia antecipadamente paga, seja por lhe estabelecer uma desvantagem exagerada.”[1]

Em suma, a cláusula de não reembolso é nula de pleno direito, sendo abusiva por implicar desvantagem exagerada para o consumidor e enriquecimento sem causa para as empresas prestadoras dos serviços de hotelaria e transporte aérea.

Pergunta-se então: como fica essa relação diante da situação atual gerada pela pandemia do covid-19, a qual atingiu indistintamente e de forma grave tanto os consumidores como as empresas dos serviços de hotelaria e transporte aérea?

É certo que a instaurada pandemia do coronavírus e todas as medidas adotadas pelo Governo para sua contenção são fatos externos, extraordinários e totalmente alheios à vontade tanto dos consumidores como as empresas prestadoras de serviços de hotelaria e transporte aéreo. Nesse sentido, a pandemia corresponderia a um evento de força maior, excludente da responsabilidade civil, conforme prescreve o artigo 393 do Código Civil.

Ocorre que, ainda que excludente da responsabilidade, a crise não pode ser invocada para justificar o enriquecimento sem causa das empresas prestadoras dos serviços de hotelaria e transporte aéreo, que reterão para si os preços recebidos e não prestarão os serviços, em detrimento do consumidor – parte hipossuficiente que pela CF/88 deve ser protegida –, o qual, além de arcar com o preço da tarifa, ficará sem o serviço.

Ademais, os efeitos deletérios da crise são bem mais graves para o consumidor, normalmente pessoas físicas, chefes ou membros de família que estão perdendo seus empregos ou cujos salários estão sendo reduzidos ou sendo suspensos!

Ressalta-se, nesse ponto, que a MP 925 ou a MP 948 editadas pelo Governo Federal em socorro às empresas aéreas brasileiras e ao setor de turismo, não podem ser invocadas para dispensar o dever de restituição dos valores pagos, pois ambas padecem de vícios de inconstitucionalidade.

A MP 925, que dispõe sobre medidas emergenciais para a avião civil brasileira (e não para estrangeiras ainda que tenham escritório no país), prevê no seu artigo 3º que o consumidor pode optar pelo reembolso ou pela remarcação no prazo de doze meses.

E, a MP 948, em seu artigo 2º, vai mais além e expressamente dispensa os prestadores de serviços de turismo da obrigatoriedade de reembolsar valores pagos pelo consumidor referentes a serviços, desde que assegurada: a) a remarcação, ou b) a disponibilização de crédito ou, ainda c)  outro acordo a ser formalizado com o consumidor.

Observe-se que ambas as medidas privilegiam as empresas prestadoras de serviço aéreo ou de hotelaria em detrimento do consumidor, invertendo a ordem contida no artigo 5º, inciso XXXII, da CF/88, de que o Estado tem o dever de promover a defesa do consumidor, pois a parte hipossuficiente da relação.

Na verdade, as MP`s acirram a vulnerabilidade do consumidor, que fica refém das condições e regras impostas pelas empresas, em situação de desvantagem ainda mais gritante.

Lembre-se que não há ainda evidência científica que ao menos aponte uma previsão de quando a pandemia passará e a circulação das pessoas será segura. Logo, qualquer remarcação, como sugerem as medidas provisórias, é prematura. E, em muitos casos a remarcação pode não interessar ao passageiro, ou porque o motivo da viagem não se faz mais presente ou porque não é mais possível por outros fatores.

Nesse contexto, se o propósito das MP`s 925 e 948 é a ajuda, essa deveria ter sido direcionada ao consumidor, assegurando-lhe o direito de ser restituído das quantias pagas pelos serviços que não serão prestados, não apenas porque assim determina a CF/88, mas também porque é assim que lhe garante a legislação e esses valores certamente serão essenciais para a manutenção das necessidades da sua família.

As MP 925 e 948 ofendem também o princípio da isonomia, na medida em que as dificuldades decorrentes da pandemia atingem a todas pessoas e a todas as empresas de todos os setores da atividade econômica de forma indistinta. Contudo, com relação às empresas dos demais setores, o Governo não editou qualquer norma desobrigando-os do reembolso os valores que lhes foram antecipados na hipótese de cancelamento dos serviços contratados.

Um exemplo são as escolas particulares cujo impacto da pandemia é extremamente profundo. Assunto seríssimo e que atinge, por certo, dezenas de milhares de pessoas a mais que o cancelamento de viagens, eventos ou shows. No entanto, até o momento, o Governo não adotou qualquer medida para dispor sobre os problemas que surgiram pela suspensão das aulas presenciais, deixando as normas vigentes regerem as soluções das celeumas.

Por essas razões, no nosso entender, o art. 3º da MP 925 e o art. 2º da MP 948 são inconstitucionais e, por isso, não podem ser invocados para afastar a obrigação do reembolso do peço pago pelos serviços que não serão prestados. 

Em suma, a crise econômica decorrente da pandemia da covid-19, seja porque não pode ser invocada para justificar o enriquecimento sem causa das empresas dos serviços de hotelaria e transporte aéreo ou, seja porque as MP`s 925 e 948 são inconstitucionais, não altera a conclusão no sentido de que, na hipótese de cancelamento de reservas em que as empresas já receberam o preço do consumidor, essas têm a obrigação de restituí-lo a fim de que a situação entre as partes retorne ao status quo anterior. E isso, mesmo quando os serviços foram contratados pela tarifa não reembolsável, a qual é nula de pleno direito por abusiva, como acima demonstrado.


[1] STJ, REsp 1.321.655/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/10/2013, DJe 28/10/2013.

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